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Insubmissa

Gislaine Marins

 

É claro que todo escritor gostaria de viver do seu ofício. O problema é que lendo as biografias e mesmo as declarações de muitos deles, percebemos que escrever não pode ser uma profissão. Se vira, perde a arte. A consequência dessa premissa não é que o artista deva ser pobre ou viver às custas de mecenas, mas a obra deve nascer sob uma outra lógica, insubmissa à organização do mundo, finalizada para o ganho monetário. A literatura é, desde a sua concepção, um gesto de rebeldia ao status quo. Se não estranhamos a obra, a obra irá nos entreter: uma diferença entre arte e diversão.

A arte possui as suas próprias regras. O escritor sabe como capturar o leitor nas suas entrelinhas. Mas o autor que diverte também conhece as ferramentas da escrita e utiliza-as para distrair o seu leitor. Por isso, a literatura busca continuamente subverter as suas próprias regras, chocando, por vezes, o leitor. A literatura não promete alívio e não dá descanso aos olhos.

Para que ler literatura, então? Para sofrer? Para seguir o fio condutor e tortuoso de alguém que também padeceu – e muitas vez foi mal pago por isso? Para saber – o que, além daquilo que já não tenhamos tomado conhecimento na vida real, por meio de um filme ou por meio das redessociais? Será que a literatura tem algo novo para contar? A resposta é: quase sempre não. A literatura vale-se, em geral, da mesma história e da mesma realidade a que podemos ter acesso por meio de outras fontes. A questão é como a literatura lida com o material da história e da realidade.

Um fato é ver uma fila de ônibus com imigrantes, sobreviventes dos tantos naufrágios e dos seus dramas pessoais, sendo levados para os centros de identificação de estrangeiros. Outra coisa é imaginar o que acontecia aos imigrantes que desembarcavam no Brasil ou nos Estados Unidos, a partir do século XIX, e eram levados para centros de identificação. Outra coisa ainda é imaginar o que acontecia aos africanos capturados e levados forçosamente para as Américas, onde desembarcavam e eram identificados para serem avaliados e vendidos pelo melhor preço de acordo com as suas condições físicas, mentais e de saúde. A literatura recria e provoca os nossos sentidos, para estranharmos a realidade, para ficarmos indignados com a história que se repete, para não ficarmos distraídos com um enredo tantas vezes copiado para instigar as nossas emoções.

Por isso, em geral, detesto filmes colossais, carregados de cenas violentas e figurantes, que apavoram e agitam o nosso coração. Não detesto os temas, mas a forma como são tratados. A violência é incontornável para qualquer escritor, assim como para qualquer pessoa. É impossível não sermos tocados pela realidade que nos rodeia: sofremos a violência ou percebemos a violência, sentimos impotência ou indignação diante da violência, mas não podemos ignorar que ela existe e mobiliza uma boa parte da nossa existência. Não podemos ignorar o fluxo migratório mundial e a violência que emerge nesse processo.

Na literatura acontece o mesmo, a diferença é como isso é representado. É o “como” que faz de um autor um escritor. É o “como” surpreendendo, familiarizando ou desfamiliarizando, interrompendo para não dar respostas fáceis, interrompendo para não dar nenhuma resposta, interrompendo para retomar com uma resposta que o leitor não quer ler ou para dar a resposta inevitável, é o “como” uma sentença inapelável.

Para ser escritor e fazer literatura é preciso ser mestre de vidas – no plural – dentro de si e fora de si mesmo. É preciso profundidade e pluralidade. Um horizonte que escurece para dentro das próprias emoções, experiências e memórias, e que se abre para uma linha infinita, que em geral o próprio escritor desconhece, mas trilha. Ler literatura é aventurar-se na mesma vereda que talvez não dê em nada, mas que pode nos tornar mais preparados para não ver a realidade apenas com os sentidos, mas também com sensibilidade. 

Sensibilidade, essa capacidade de desenvolver os sentidos, não de deixá-los entregues à deriva, à emoção bruta daquilo que se apresenta diante de nós. Sensibilidade: esse dom de lapidar, domando as emoções, olhando para elas, na medida do possível, sentindo e tendo consciência de estar sentindo. A literatura, a literatura que nos conduz através dos tantos “como”, é uma experiência irrepetível, insubordinada, inovadora: mesmo quando não nos conta nada de novo.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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