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A grande fuga

Gislaine Marins

Ir à escola para aprender a fugir da prisão. As aulas estão recomeçando na Itália e mais de um alguém recorda o testemunho do jornalista Corrado Augias, que certa vez relatou o seu encontro na adolescência com um professor que desafiou os alunos a apresentarem motivos para estudar. Depois de algumas respostas previsíveis e sensatas, o professor declarou que estudar servia para aprender a fugir da prisão.

Traduzo um trecho do relato, que é melhor do que qualquer comentário: “Olhamo-nos atônitos” – e segue reproduzindo a explicação do professor: “A ignorância é uma prisão. Pois lá dentro você não entende e não sabe o que fazer. Nos próximos cinco anos teremos de organizar a maior fuga do século. Não será fácil, pois querem que vocês permaneçam ignorantes. Mas se vocês pularem o muro da ignorância irão entender sem ter de pedir ajuda. E vai ser difícil enganar vocês. Quem topa?”

Na vida a gente foge das coisas erradas. Foge das pessoas para não encarar os problemas. Foge das responsabilidades para não aceitar as próprias limitações. Foge do esforço para não reconhecer a preguiça. Foge da coragem para não enfrentar a verdade. Foge da cidade para não mudar estilo de vida. Foge com um bilhete aéreo na mão para não ter de conhecer o mundo. Porque conhecer não é visitar, é vivenciar. Conhecer não é ver, é olhar. Não é sentir, é cheirar. Não é ouvir, é escutar. Para conhecer não bastam os sentidos e a intuição, são necessárias sensibilidade e atenção.

Realmente, a fuga só vale a pena se prometer uma grande recompensa. Fugir da ignorância é assim: trabalhosa, mas não decepciona. Nesse sentido, é bom ir para a escola para aprender a fugir. É bom para não sair com uma visão deformada do conhecimento: como uma caixa de ferramentas sem manual de instrução. Dito de outra forma: não basta transmitir informações, dados, datas e personagens; é preciso explicar como usar e como criar ferramentas para usar, para manter e para reinventar os sentidos do conhecimento.

É preciso esmiuçar o conhecimento, revelar os seus segredos, ilustrar com exemplos de como pode ser uma alavanca ou uma trava para a fuga. O conhecimento liberta, mas com o conhecimento também se pode manter as pessoas cativas. Presos à ignorância, podemos percorrer o mundo inteiro e não entender nada do que acontece ao nosso redor: a maravilha da vida, as oportunidades, as possibilidades de futuro, de encontros, de concórdia, de paz. Acorrentados à ignorância podemos atravessar a vida como transeuntes e não como viajantes, como figurantes e não como sujeitos.

Tudo certo até aqui, mas lamento informar que a prisão nunca acaba. Não basta fugir da escola, é preciso desenvolver um espírito fugitivo para ser livre. Para fugir do ódio, para fugir das fake news, para fugir da hipocrisia, para fugir do medo, para fugir das injustiças, para fugir dos nossos hábitos. Se a ignorância é uma grande prisão, não basta pular os muros da escola, é preciso saltar os muros da vida, todos os dias.

Sobre o autor

Gislaine Marins

Doutora em Letras, tradutora, professora e mãe. Autora de verbetes para o Pequeno Dicionário de Literatura do Rio Grande do Sul (Ed. Novo Século) e para o Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas (Editora da Universidade/Tomo Editorial). É autora do blog Palavras Debulhadas, dedicado à divulgação da língua portuguesa.

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